Nutrição na UTI: o que dizem as evidências científicas recentes?

Nutrição na UTI: o que dizem as evidências científicas recentes?

nutrição na UTI
Fonte: Canva

Com os avanços da ciência, as recomendações de nutrição na unidade de terapia intensiva (UTI) mudaram – e continuam mudando. 

Embora se suponha que os nutrientes podem neutralizar o catabolismo e melhorar os desfechos clínicos na doença grave, evidências cumulativas revelam danos ao fornecer nutrição completa na fase aguda.

Uma revisão narrativa reuniu os achados de grandes ensaios clínicos randomizados (ECRs) sobre as melhores práticas de nutrição na UTI, e o que ainda falta ser investigado. Confira a seguir.

Nutrição na UTI: o que dizem as evidências científicas?

Na última década, vários ECRs abordaram o momento, a via e a dosagem da terapia nutricional em pacientes críticos.

O estudo EPaNIC (2011) foi o primeiro a mostrar que iniciar precocemente a nutrição parenteral (NP) suplementar piorava a recuperação, com duração prolongada de suporte a órgãos vitais, levava a mais infecções e uma maior incidência de fraqueza adquirida na UTI.

Teoricamente, o dano poderia ser explicado pela maior dose de alimentação — superalimentação precoce — ou por dano específico à via de alimentação parenteral. Entretanto, outros estudos (CALORIES e NUTRIREA-2) mostraram que a via (enteral vs. parenteral) com mesma dose calórica não fazia diferença

No ECR Nutrirea-2, a NE precoce em altas doses foi ainda mais prejudicial em comparação com a NP precoce em altas doses, por induzir complicações gastrointestinais potencialmente letais.

Três outros RCTs (EDEN, PermiT e TARGET) testaram doses maiores de nutrição enteral na fase aguda por períodos de 6 a 28 dias, mas não observaram benefícios. Em alguns casos, sugeriram possível dano, especialmente em pacientes com maior risco nutricional.

O estudo NUTRIREA-3 reforçou esses achados: nutrição precoce de alta dose calórica e proteica (25 kcal/kg/dia e 1,0–1,3 g/kg/dia de proteína), versus nutrição em baixas doses na primeira semana (6 kcal/kg/dia e 0,2–0,4 g/kg/dia de proteína), resultou em dependência prolongada da UTI e aumento de complicações.

O maior ECR sobre suplementos proteicos, o EFFORT Protein, mostrou que uma alta dose precoce de proteína (≥ 2,2 g/kg/dia) se associa à dependência prolongada na UTI e ao aumento da mortalidade nos pacientes graves e com lesão renal aguda.

A falta de calorimetria indireta foi apontada como possível falha dos estudos. No entanto, não há evidências sólidas de que a alimentação precoce baseada em calorimetria indireta seria superior à nutrição baseada em uma meta energética calculada. 

O maior ECR sobre o tema (TICACOS-International) não encontrou benefício da alimentação baseada em calorimetria indireta iniciada logo após a admissão na UTI.

Impactos das evidências científicas em diretrizes 

As evidências apresentadas anteriormente levaram à revisão das diretrizes internacionais. 

Diretrizes europeias (ESPEN)

Antes (2006/2009): iniciar NE em até 24h e atingir 25 kcal/kg/dia em 2–3 dias.

Agora (2019/2023): iniciar NE em baixa dose até 48h, avançar para a meta calórica em 3–7 dias, e só considerar NP entre os dias 4–7.

A recomendação de proteínas foi atenuada: de 1,3–1,5 g/kg/dia para 1,3 g/kg/dia progressivamente.

Diretrizes americanas (ASPEN)

Antes (2009): início precoce da NE e não usar NP se NE não fosse viável.

Agora (2022): NE ou NP como via primária na primeira semana, com meta calórica de 12–25 kcal/kg/dia. Porém, essa orientação antecede os resultados do Nutrirea-3, que mostraram danos com doses elevadas. A NP suplementar antes do 7º dia ainda não é recomendada.

Além disso, há uma recomendação proteica de 1,2–2 g/kg/dia, feita antes do EFFORT Protein.

A tabela abaixo reúne as recomendações atuais da ESPEN e ASPEN, junto com as considerações para recomendações futuras realizadas pelos autores. 

Diretrizes europeias (2019; parcialmente atualizadas em 2023) Diretrizes americanas (2022) Considerações para o futuro
Via de alimentação primária Enteral  Enteral ou parenteral Provavelmente enteral
Dose de alimentação, horário de início e modo de progressão da nutrição – Início precoce da nutrição enteral (dentro de 48 h).

– Iniciar com nutrição hipocalórica, aumentar progressivamente em direção à meta em 3 a 7 dias

– 12 a 25 kcal/kg/dia durante os primeiros 7 a 10 dias.

– Dose dependendo do julgamento clínico

– Evitar alimentação completa nos primeiros dias. 

– O momento ideal de início e o modo de progressão da nutrição são desconhecidos. 

– Sugestão de iniciar o suporte nutricional progressivamente e aceitar alimentação abaixo da meta por pelo menos vários dias. 

– Sugestão de alteração da ingestão nutricional dependendo da evolução clínica (doses mais altas e progressão mais rápida em pacientes em recuperação, redução temporária em caso de nova lesão grave).

Momento da nutrição parenteral suplementar (em caso de nutrição enteral insuficiente) – Avaliação caso a caso

– Sugestão de iniciar a nutrição parenteral suplementar entre o 4º e o 7º dia

– Nenhuma nutrição parenteral suplementar antes do 7º dia – Alimentação abaixo da meta pode ser aceita por pelo menos vários dias. 

– O momento ideal para iniciar a nutrição parenteral suplementar não é claro e provavelmente varia entre os pacientes, dependendo da duração da resistência anabólica. 

Alvo proteico 1,3 g/kg pode ser administrado progressivamente 1,2–2 g/kg/dia – Evitar altas doses de proteína na fase aguda. Dose ideal na fase pós-aguda não é clara (a ser estudada).

Sugere-se que as diretrizes priorizem recomendações firmes sobre o que evitar e sejam mais cautelosas ao prescrever condutas, considerando que:

  • A duração exata da fase aguda é indefinida (3–7 dias ou até 10 dias).
  • As diretrizes americanas ainda permitem doses precoces altas, contradizendo as evidências mais recentes.
  • Não há ECRs avaliando se nutrição hipocalórica precoce é melhor do que terapia progressiva, intermediária ou até ausência de nutrição.
  • Nenhum grande RCT demonstrou que NE precoce seja superior à tardia.

Por fim, embora a NE não tenha mostrado superioridade sobre a NP nos ECRs, ela é preferida se viável, pois é mais barata e, ao ser usada por longos períodos, a NP pode causar complicações, como observado em pacientes com intestino curto.

O que podemos concluir?

Apesar da lógica intuitiva de que oferecer nutrição completa logo nos primeiros dias da internação em UTI poderia melhorar os desfechos, as evidências científicas recentes apontam justamente o contrário. 

Ensaios clínicos robustos demonstram danos causados ​​por altas doses de macronutrientes por qualquer via durante a fase aguda da doença crítica.

Na revisão completa, os autores elucidam os principais mecanismos associados à estes achados, que envolvem resistência anabólica, supressão da autofagia e cetogênese, e superalimentação com hiperglicemia.

Por isso, as diretrizes mais recentes têm adotado uma abordagem mais cautelosa. Até que mais investigações resolvam as dúvidas atuais, o mais seguro pode ser evitar excessos e aceitar, nos primeiros dias, uma nutrição abaixo da meta, adaptada à resposta clínica do paciente.

Ademais, os autores defendem o suprimento das necessidades basais de micronutrientes em todos os pacientes graves, visto que o adiamento da nutrição completa pode aumentar o risco de deficiências.

Para ler o artigo científico completo, clique aqui.

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Referência:

de Man AME, Gunst J, Reintam Blaser A. Nutrition in the intensive care unit: from the acute phase to beyond. Intensive Care Med. 2024 Jul;50(7):1035-1048. doi: 10.1007/s00134-024-07458-9. Epub 2024 May 21. PMID: 38771368; PMCID: PMC11245425.

Pós-graduação de Nutrição Clínica

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