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Muito se fala em desnutrição, mas há um tipo específico desta condição que é frequentemente esquecida por políticas de saúde, além de subdiagnosticada e subtratada: a desnutrição relacionada à doença.
Segundo o Dr. Kremlin Wickramasinghe, Conselheiro Regional da OMS/Europa para Nutrição, Atividade Física e Obesidade, “a negligência em torno dessa questão a torna ainda mais urgente, especialmente para grupos vulneráveis de pessoas”.
Neste artigo, entenda o que é a desnutrição relacionada à doença, suas causas, consequências e mais.
O que é a desnutrição relacionada à doença?
A desnutrição relacionada à doença (DRD), ou desnutrição secundária, é um tipo específico de desnutrição causada por processos inflamatórios, e/ou pela redução na ingestão ou absorção de nutrientes, associada à quase qualquer doença aguda ou crônica, incluindo doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs).
A DRD é multifatorial, envolvendo:
- Doença primária
- Alterações hormonais
- Alterações metabólicas
- Envelhecimento
- Baixa atividade física
- Baixa conscientização
- Perda de apetite
- Cuidado nutricional inadequado
Ao contrário da desnutrição energético-proteica, relacionada a ingestão inadequada de calorias e proteínas, a desnutrição relacionada a doenças se deve à inflamação que ocorre na maioria das doenças e à redução da ingestão e assimilação de alimentos comumente associadas à doença.
Prevalência da desnutrição relacionada à doença
A DRD é mais prevalente em países de baixa renda, em adultos mais velhos e em pacientes com doenças crônicas não transmissíveis, como câncer, bem como naqueles com doenças agudas e complicações, particularmente pacientes cirúrgicos e aqueles em terapia intensiva.
Segundo dados da OMS, a desnutrição relacionada a doenças afeta:
- 30 a 50% dos pacientes internados
- 40% dos pacientes com câncer
- 30 a 70% dos pacientes idosos
- 24% dos pacientes internados com doenças cardiovasculares ou pulmonares
- 38 a 78% dos pacientes em terapia intensiva
Quais são os impactos da desnutrição relacionada à doença?
A DRD compromete múltiplos aspectos da saúde do paciente, agravando o curso da doença primária e aumentando tanto a morbimortalidade quanto os custos de atenção. Entre os principais impactos, destacam‑se:
1) Comprometimento da resposta imunológica e da recuperação
A DRD dificulta a mobilização de defesas contra infecções e retarda a cicatrização de feridas, resultando em maior suscetibilidade a complicações pós‑operatórias e infecções nosocomiais.
2) Aumento da mortalidade
Pacientes com DRD apresentam risco de morte 3,4 vezes maior em comparação a pacientes bem nutridos, refletindo a menor reserva funcional e a incapacidade de enfrentar eventos agudos.
3) Prolongamento da internação hospitalar
A presença de DRD está associada a um tempo de permanência em hospital 1,9 vezes mais longo, elevando o risco de eventos adversos relacionados à internação e sobrecarga dos sistemas de saúde.
4) Maior incidência de comorbidades
Há um aumento de 2,2 vezes na ocorrência de condições como infecções, úlceras de pressão e falência de órgãos em pacientes desnutridos em comparação aos não desnutridos.
5) Agravamento das doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs)
As DCNTs, responsáveis por quase 90% das mortes e 85% dos anos vividos com incapacidade na Região Europeia da OMS, têm seu impacto acrescido pela DRD, com piores desfechos cardiovasculares, metabólicos e oncológicos.
6) Ônus econômico
A DRD implica custos significativamente maiores: estima‑se um aumento de 30,13% no custo médio de hospitalização de pacientes desnutridos.
Em suma, a DRD não apenas deteriora o estado clínico e funcional do paciente, mas também amplia a demanda por recursos de saúde e eleva a mortalidade, destacando a importância de sua detecção precoce e manejo nutricional adequado.
Manejo da DRD
A OMS recomenda uma abordagem de 4 etapas para os cuidados nutricionais da desnutrição relacionada à doença:
1) Triagem
Qualquer profissional de saúde pode fazer a triagem a partir de ferramentas validadas, como:
- Triagem de Risco Nutricional 2002 (NRS-2002)
- Mini Avaliação Nutricional (MAN) – versão resumida
- Ferramenta Universal de Triagem de Desnutrição (MUST)
Em hospitais, deve ser realizada dentro de 24 a 48 horas após a admissão.
2) Diagnóstico e avaliação
A Iniciativa de Liderança Global sobre Desnutrição (GLIM) é um formato amplamente utilizado, baseado em consenso global, para diagnosticar desnutrição em adultos.
O GLIM inclui três critérios fenotípicos (perda de peso não voluntária, baixo peso e baixa massa muscular esquelética) e dois critérios etiológicos (ingestão ou assimilação alimentar reduzida e inflamação ou alta carga de doença).
Uma avaliação adicional deve ser realizada após o diagnóstico, incluindo a identificação da doença subjacente, estado funcional e perfil bioquímico.
3) Tratamento personalizado
O tratamento da desnutrição relacionada à doença deve ser individualizado, considerando o estado clínico e nutricional do paciente. Pode envolver desde ajustes na dieta habitual até o uso de suplementos nutricionais orais, ou ainda a introdução de nutrição enteral ou parenteral, quando necessário.
A terapia nutricional médica resulta em melhores resultados clínicos, incluindo melhor sobrevida e menos taxas de readmissão hospitalar não eletiva entre pacientes desnutridos.
4) Monitoramento e avaliação
O monitoramento é necessário para verificar o progresso da administração nutricional, planejar quaisquer ajustes necessários para garantir nutrição adequada e para assegurar tolerância e ausência de efeitos colaterais até que os resultados esperados sejam alcançados.
O monitoramento requer um plano individual no qual as metas nutricionais sejam definidas.
O que podemos concluir?
A desnutrição relacionada à doença é uma condição frequente, grave e frequentemente negligenciada, que agrava o curso clínico das enfermidades, prolonga hospitalizações e eleva custos em saúde. Reconhecer sua prevalência, impactos e possibilidades de tratamento é essencial para melhorar os desfechos dos pacientes.
Portanto, a DRD deve ser considerada um tema prioritário em programas e políticas de saúde, incluindo a alocação de recursos específicos para sua prevenção, diagnóstico e tratamento.
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- Critérios GLIM: como diagnosticar a desnutrição?
- Eficácia da transtirretina no monitoramento da terapia nutricional e da desnutrição
- Diretriz AASLD – Desnutrição, fragilidade e sarcopenia em pacientes com cirrose
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Referências:
World Health Organization – European Region; ESPEN. Disease-related malnutrition: a time for action. 2023.
World Health Organization. Disease-related malnutrition: WHO/Europe factsheet highlights neglected challenge. 2024.
European Society for Clinical Nutrition and Metabolism (ESPEN). Desnutrición relacionada con la enfermedad (DRE): una amenaza ignorada para todos los pacientes, el cuidado nutricional importa. ESPEN Fact Sheets; 2023.
Ford KL, Basualdo-Hammond C, Nasser R, Avdagovska M, Keller H, Malone A, Bauer JD, Correia MITD, Cardenas D, Gramlich L. Health policy to address disease-related malnutrition: a scoping review. BMJ Nutr Prev Health. 2024 Dec 8;7(2):e000975. doi: 10.1136/bmjnph-2024-000975. PMID: 39882296; PMCID: PMC11773663.